A Batalha dos Aflitos


"SIRVAM NOSSAS FAÇANHAS DE MODELO À TODA TERRA"

Trecho do Hino do Rio Grande do Sul.


Um dia ensolarado em todo o Rio Grande do Sul. A quatro mil quilômetros de distância do estado gaúcho o Sol também imperava. No dia 26 de novembro de 2005 o estado de Pernambuco vivia um dia de decisão no Campeonato Brasileiro Série B. Era um quadrangular final. No Estádio Mundão do Arruda o tricolor pernambucano Santa Cruz enfrentava a paulista Portuguesa. Apenas quinze quilômetros dali, o Estádio dos Aflitos recebia o confronto Náutico e Grêmio. Todos os quatro clubes chegam nesta última rodada com chances de acesso para a Série A, pois neste ano sobem apenas dois clubes. O tricolor gaúcho e o tricolor pernambucano só dependiam deles para conquistarem o acesso. A Portuguesa dependia de um resultado positivo do Grêmio e de uma vitória contra o Santa Cruz. Já o Náutico dependia da vitória do Santa Cruz e de um resultado positivo contra o Grêmio. Os deuses do futebol reservaram este momento para colocar à prova tudo o que existe de imponderável em duas partidas de futebol, concomitantemente.

Tabela do quadrangular final, antes da última rodada.

O pré-jogo não foi nada amistoso e o Grêmio já precisou driblar antes mesmo da bola rolar. A delegação tricolor ficou em um hotel localizado à cinquenta quilômetros de Recife para não sofrer os tradicionais foguetórios por parte da torcida pernambucana. O clima da última rodada foi moldada pela imprensa nordestina, criando um confronto PE x SP/RS. As duas torcidas, outrora rivais, estavam juntas para subir os times pernambucanos, deixando para trás Portuguesa e Grêmio. No vestiário dos Aflitos o Grêmio chega para respirar tinta e querosene. A direção do Náutico minou o vestiário gremista com a intenção que os jogadores tricolores entrassem em campo tontos, por causa do forte odor. O portão que dava acesso ao campo estava trancado com cadeado e o time gaúcho não conseguiu aquecer em campo. Um policial militar tinha ordens de abrir o portão apenas minutos antes do jogo começar. Finalmente o Grêmio entrava no gramado dos Aflitos, estádio com nome tão preponderante e oportuno para a ocasião.

Em pé: Marcelo Oliveira, Anderson, Galatto, Pereira, Domingos, Lucas Leiva, Sandro Goiano, Escalona e Marcelo Grohe.
Agachados: Samuel, Alessandro, Marco Antônio, Lipatin, Marcelo Costa, Patrício, Nunes, Ricardinho e Marcel.
(FOTO: RICARDO DUARTE/AGÊNCIA RBS)

Nesta rodada dupla, enquanto começa o jogo no Arruda, a peleia começa nos Aflitos. Depois de respirarem tinta fresca, posaram para a foto histórica. Ambos os jogos começam tensos. O jogo nos Aflitos começa à cento e vinte quilômetros por hora e já aos 12 segundos de jogo Patrício faz a primeira falta da partida. O jogo segue tenso e as duas equipes seguem se estudando. A Portuguesa abre o marcador contra a equipe que vinha liderando todo o campeonato, calando o Mundão do Arruda aos 19 minutos do primeiro tempo com Cléber, de pênalti. Nos Aflitos, aos 34 minutos com o primeiro tempo se encaminhando para o final, o árbitro Djalma Beltrami assinalou o pênalti duvidoso de Domingos em cima de Paulo Matos. Cartão amarelo para o jogador tricolor. A primeira provação tricolor estava armada. O lateral Bruno Carvalho se apresentou para bater, depois da recusa do craque do time pernambucano Kuki. Bruno Carvalho, com cara de mau e de poucos amigos, olha para Galatto. O jovem goleiro, do município de Cachoeirinha na Região Metropolitana de Porto Alegre, já se via em uma situação complicadíssima logo no início de sua carreira. Mas ele é frio! É um jovem, por isso está de titular! Galatto segue confiante, como se não desse bola para a encarada suja de Bruno Carvalho. O batedor pernambucano corre para a bola e a esfera explode, como um cometa, na trave direita de Galatto! Jogadores azuis comemoram mas já se organizam em campo rapidamente para o andamento do jogo.

Bruno Carvalho prestes a errar o pênalti. (FRAME DA TRANSMISSÃO RBSTV)
Apenas quatro minutos depois, no Arruda, começa a derrocada da Portuguesa. O artilheiro coral da Série B, Reinaldo, recebe na grande área e fuzila o gol paulista. Tudo igual no Arruda, 1x1. Aos 40 minutos do primeiro tempo, dois minutos depois do gol, Rosembrick faz de gato e sapato a defesa da Portuguesa pela ponta esquerda e cruza para o inspirado Reinaldo anotar seu segundo gol no jogo e o segundo do time coral em cima da Portuguesa. Cai a resistência paulista e o Grêmio vai para o intervalo respirar querosene e sabendo que não receberá ajuda externa. No vestiário o treinador tricolor Mano Menezes ia de ouvido à ouvido em seus jogadores para dar instruções pois a direção capibaribe instalou aparelhos de som no teto, dificultando por demais o descanso dos atletas. Aplausos foram desferidos quando Domingos, totalmente irritado, resolveu a situação subindo em um companheiro e destruindo o aparelho. Mas já não havia mais tempo. O Grêmio precisava retornar ao gramado para mais quarenta e cinco minutos de decisão que definiria o destino de uma instituição mais que centenária, uma instituição campeã do mundo! No Arruda o placar obrigava o Grêmio a depender de si e a Portuguesa não mostrava nenhum poder de reação diante de 50 mil torcedores do Santa Cruz. Já nos Aflitos, os 30 mil torcedores do Náutico, que lotavam o antigo estádio, estavam convictos que a vitória não tardaria a acontecer. Mas a partida continuava tensa. Faltas duras e chegadas perigosas eram desferidas constantemente. Porém o Náutico estava um pouco melhor pois marcava as laterais, obrigando o time tricolor a tentar fazer jogadas pelo meio. Aos trinta minutos do segundo tempo o lateral chileno Escalona coloca a mão na bola, impedindo o esférico de chegar ao seu destino. Ele argumenta ao apitador que a bola bateu em sua coxa direita. Não deu. Beltrami tira do bolso o segundo amarelo para o Escalona e, em seguida, tira o plástico vermelho, o ergue e aponta para fora, indicando a expulsão do chileno. Pronto, o Grêmio fica com dez jogadores em campo. A torcida vai à loucura nos Aflitos! O resultado era o que interessava ao Grêmio. O empate colocaria o tricolor gaúcho no seu lugar de direito, lugar de onde nunca deveria ter saído. Era só retrancar e resistir quinze minutos até o final da partida, pois agora está em desvantagem numérica. Mas o destino certo está sendo escrito em linhas tortas. Aos 35 minutos do segundo tempo, faltando apenas dez minutos para o final da partida, o truncador Djalma Beltrami mara um pênalti inexistente para o Náutico quando a bola bate no cotovelo, colado ao corpo, de Nunes na entrada da área. Uma derrota ali amargaria o segundo ano do clube na Série B e deixava em dúvidas a saúde financeira de um dos maiores clubes do mundo. A confusão estava formada.

Confusão instaurada após a marcação do segundo pênalti. (FOTO: AGÊNCIA O GLOBO)
Jogadores do Grêmio vão para cima do apitador, o empurram e a polícia de choque já entra no gramado. Patrício é expulso por peitar o árbitro. Um PM acerta um chute no ar em Patrício. Jogadores do Grêmio tentam acertar o árbitro e Sandro Goiano tenta gesticular explicando que o braço do Nunes estava colado. Tudo em vão. Afinal o apitador jamais voltaria atrás em sua marcação equivocada. Jogadores do Náutico observam tudo de longe e dirigentes de ambos os clubes invadem o gramado. Inclusive o radialista Luiz Carlos Martins, o Cacalo, ex-presidente do Grêmio. Dirigentes discutem forte no gramado dos Aflitos, jogadores ainda tentam contato com o árbitro que segue cercado pela Polícia Militar. Nunes tenta agredir o árbitro que o expulsa logo em seguida. O Grêmio já têm três expulsos. Trinta mil torcedores cantam e dançam nas arquibancadas do Estádio dos Aflitos. Em meio a confusão o técnico Mano Menezes tenta acalmar os jogadores, sem sucesso. No gramado o presidente Paulo Odone questiona as sanções de uma retirada de time de campo à Renato Moreira, diretor jurídico. Sua resposta não foi nada animadora: "Presidente, as punições são as piores possíveis." O árbitro pega a bola e vai em direção à marca do pênalti e encontra Marcel cavando a cau na marca para dificultar o batedor. Ele leva a amarelo e diz ao apitador: "Pode me expulsar! Já fui substituído mesmo!". O time do Náutico, com um pênalti a favor, definia o batedor do tiro penal. Quando Beltrami chega à marca, ou o que havia sobrado dela, com a redonda nas mãos o volante capitão Sandro Goiano fica estático em cima da marca penal argumentando e impedindo que o pênalti fosse batido. Eis quando chega o zagueiro Domingos, incontrolável, dando um tapa na mão do juiz e derrubando a bola. Beltrami, imediatamente, retira o cartão vermelho e o aponta para o zagueiro. Mais um expulso. Agora, com quatro jogadores a menos, se houver mais uma expulsão o jogo é suspenso e o Grêmio perde a partida. O Náutico tem um pênalti para bater faltando dez minutos para o término do jogo e só um milagre poderia salvar o Grêmio. Na parte vermelha do gramado ninguém queria bater o pênalti. Sobrou para o lateral Ademar, jovem de 22 anos. Galatto observava tudo de longe, como se fosse defender um pênalti normal. O goleiro tricolor foi até o lateral Ademar e o desejou boa sorte. Ademar, assustado, o devolveu com um leve cumprimento de cabeça. Ademar junta a terra em volta da marca do pênalti e tenta recolocar para desfazer o buraco. Um repórter, torcedor do Sport Recife, canta para Galatto que este menino nunca bateu um pênalti na vida e o aconselha a esperar até o último momento para sair na bola. Depois de 22 minutos de paralisação, Ademar toma distância. O estádio inteiro está de mãos dadas. Sessenta mil mãos conectadas em prol de um só lance, esperando o gol de Ademar que colocaria o Náutico na primeira divisão e eliminaria do clube gaúcho. Ademar corre para a bola. Chuta no meio do gol. Galatto espera até o último momento e defende, milagrosamente, com os pés!

Galatto faz o milagre e defende o pênalti de Ademar. (FOTO: RICARDO DUARTE/AGÊNCIA RBS)
Alguns jogadores do Grêmio comemoram o milagre mas Galatto e Sandro Goiano não. Sabem que ainda têm dez minutos e o Grêmio precisa segurar com sete jogadores em campo contra os onze do time pernambucano. Mano Menezes reorganiza o time com uma linha de quatro e outra, mais à frente, com dois jogadores. Era o que dava para fazer pois pensar em marcar um gol em uma situação de sete contra onze era loucura. Então, em meio as comemorações da defesa de Galatto, Anderson é derrubado pelo zagueiro Batata na ponta esquerda do tricolor. O lendário e saudoso massagista Banha entra no gramado e diz para o guri ficar no chão. Batata recebe o segundo amarelo e é expulso por Djalma Beltrami. Os torcedores estão atônitos. Olham para o gramado sem acreditar no que estão presenciando. As ruas de Porto Alegre e de todo estado do Rio Grande do Sul ainda comemoram a defesa de Galatto quando a falta é cobrada rapidamente e Anderson invade a área do Náutico, como um Fórmula 1, um cometa, papa-léguas, adjetive como você quiser. E exatamente 71 segundos após a defesa de Galatto, Anderson toca no canto direito do goleiro Rodolpho fazendo o impossível. O gol que colocava o Grêmio na frente do placar logo depois de pegar dois pênaltis e com sete homens em campo. Foi uma loucura! Torcedores do Náutico começam a esvaziar o Estádio dos Aflitos. Jogadores pernambucanos deitam no gramado não acreditando no milagre que estavam presenciando. Jogadores expulsos, dirigente, torcedores, todos em uma convulsão emocional conjunta, todos chorando pois aquele momento é o êxtase do esporte. Um milagre nunca visto igual na história do futebol mundial. Quando Beltrami, finalmente, apitou o final do jogo, seguranças do Grêmio retiraram rapidamente os jogadores gaúchos do campo que estavam em prantos. Somente sete minutos depois do término do jogo é que o narrador e os comentaristas lembraram que o Grêmio era o campeão, tamanha façanha que acabavam de presenciar.

Anderson, prestes a sofrer a falta de Batata que culminaria em seu gol. (FOTO: RICARDO DUARTE/AGÊNCIA RBS)
No dia seguinte os jornais do mundo inteiro, como o Times de Londres, estampavam na manchete esta partida como "milagre". Este jogo foi mais que um jogo. Foi a luta do Grêmio e dos gremistas contra tudo e contra todos. Foi a prova que o jogo só termina quando acaba. O calvário de um ano na segunda divisão. A maior demostração de fé depositada em um jogo de futebol. O dia 26 de novembro de 2005 jamais será esquecido, não só pelos gremistas, mas pelo mundo inteiro. A data entrou para o estatuto do Grêmio como o Dia da Raça Gremista e é comemorada todos os anos.

"O mundo nunca viu isso! O Grêmio está na primeira divisão! Você acredita em milagres? Milagre! Milagre! Milagre!!! Deus é gaúcho, de espora e mango! Só não sei se foi maragato ou chimango!"

Pedro Ernesto Denardin, radialista da Rádio Gaúcha.


(Wikipedia.org)

SÚMULA OFICIAL DO JOGO
(Documento em PDF)



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